February 2021

Agir localmente pensar globalmente

Por Lísia Castro
(texto original)

Quando abordamos um problema social complexo, cujas soluções dependem de profundas transformações no modo como pensamos a agimos na realidade, pode soar utópico imaginar o mundo sem este fenômeno. Imagine um mundo sem pobreza, sem fome, sem exploração. Talvez não nos sintamos capazes de atuar em todas as frentes que julgamos necessárias para enfrentar o problema, ou em integrar tantas dimensões e agir de forma coordenada, ou as vezes simplesmente pensamos que esse esforço já está sendo realizado pelos governos mundiais ou por uma organização importante, de forma planejada, eficaz  e global, e que os resultados virão mais cedo ou mais tarde. Pode ser até que pensemos que o problema é parte indissociável desta realidade, e que por exemplo, é preciso que haja pobreza, para que haja riqueza. É preciso que a desigualdade se perpetue, para que os indivíduos exerçam sua liberdade, progridam pelo mérito e pela competição. Mas todas esses caminhos são estáticos, conduzem à inércia, deixam o indivíduos de mãos atadas.

Cerca de 1,3 bilhão de pessoas de 101 nações analisadas pelas Nações Unidas no ano de 2019 são consideradas “multidimensionalmente pobres”. Em relação a pobreza extrema, caracterizada por aqueles que vivem com menos de US$ 1,90 por dia, a pandemia da COVID-19 poderá acarretar um aumento de 88 milhões a 115 milhões de pessoas vivendo nessas condições. O sentimento mais comum frente a essas estatísticas é de impotência. Não fazemos parte da mesa redonda de esforços coordenados globais, não temos cargos políticos, resta-nos votar, muitas vezes com uma lista disponível de candidatos, que é como um cardápio com diferentes tipos de carnes para um vegetariano faminto: é preciso escolher o menos pior ou abster-se de escolher.

Como então fazer parte de uma mudança efetiva?

Há uma forma: em um sistema em que as soluções locais sejam as soluções globais. Partir do simples, do que cada indivíduo é capaz de compreender como melhor forma de economia, de sociedade, de consumo, de troca, de existência, e ampliar esse sistema gradualmente. Este seria um processo de desalienação, em que todos são peças fundamentais de uma mudança global. Pensar localmente então será agir globalmente.

Prout, a Teoria da Utilização Progressiva, elaborada por P.R. Sarkar em 1959, traz em seus 16 princípios, dos quais 5 são considerados fundamentos, uma visão que nos permite pensar igualmente em como atuar nas localidades, e em como expandir essa atuação à níveis cada vez mais amplos, até um governo global, sem fronteiras, comprometido com o bem estar de todos os seres, através de um modelo de economia descentralizada.

Para compreender essa ideia, podemos utilizar o conceito de sintropia, explicado por Ersnt Gotsch, e que dá nome a agricultura que criou, com fantásticos resultados ao se trabalhar em sintonia com a natureza. Ao contrário da entropia, em que um sistema perde energia, e tende ao caos, ou seja, se torna menos complexo, a sintropia atua como a própria natureza, ganha energia percorrendo etapas de modo que o sistema adquire energia gradualmente, e em níveis suficientes para prosseguir rumo a sistemas mais complexos. É um esforço sustentado por diversos processos simples, que tornam possíveis níveis cada vez mais elevados de organização.

O progresso social caminha de forma semelhante, deve ser passo a passo, no ritmo da capacidade local, de acordo com a realidade de forma que possa ser sustentado no tempo e aprimorado pelos agentes internos desse meio, ou seja, a população local deve estar plenamente engajada nesse progresso, é ela que deve incorporá-lo. Isso envolve a utilização progressiva de uma série de recursos da forma racional, ou seja priorizando o bem estar dos seres humanos e do equilíbrio do planeta.

Esses recursos podem ser de ordem física, como matérias primas, acessibilidade do local, potencial agrícola, potencial industrial e de manufaturas considerando os recursos disponíveis, ou de ordem social e cultural local, ou seja, estão interligados nesse sistema níveis mentais, físicos, psíquicos que mostrarão os caminhos para a mudança, num sentido de autossustentabilidade em escala crescente, da organização cooperada e do progresso individual e coletivo.  Essa forma de transformação, enérgica mas coordenada, Prabhat Ranjan Sarkar chama de revolução nuclear.

O que podemos adquirir em nossa localidade? Como podemos fomentar o mercado local?  Com quem nos unir para ampliar o alcance dessas atitudes individuais? Que cooperativas de produção ou de consumo podem ser criadas para trazer renda e produtos de melhor qualidade a população local? O que podemos fazer para melhorar a saúde e bem estar da localidade em que vivemos? O que nos traz felicidade que podemos compartilhar? Que práticas regenerativas de agricultura podem ser aplicadas? Que tipos de escolas podem ser criadas de forma comunitária, que favoreçam o desenvolvimento pleno de crianças e adultos?

P.R. Sarkar considera tudo aquilo que constitui o ser humano e o desenvolvimento da vida em todas as suas manifestações, ao elaborar sua teoria socioeconômica. Neste sentido Prout envolverá conceitos de organização social, administração econômica, governança, considerando dimensões da ética, educação e espiritualidade.

Podemos abordar a espiritualidade dentro do contexto da filosofia Neo-humanista, teoria que está na base do pensamento de Prout. O Neo-humanismo nos fornece uma visão ecológica profunda, capaz de transformar a forma como refletimos sobre a realidade e a transformamos. Ela nos ensina a compreender a interdependência entre todos os seres, a unidade fundamental que se manifesta através da diversidade, o valor não apenas utilitário mas próprio de cada ser, a capacidade, responsabilidade e potencial que os seres humanos têm de contribuir com  o  desenvolvimento da vida que o cerca, suas limitações e fronteiras de pensamento que o separam de outras nações, outros povos, outros grupos, e principalmente, a manifestar o amor por tudo que é vivo e assegura a vida. E está é a base de PROUT, permitir a todos os seres o pleno desenvolvimento, a felicidade, a realização, e que esse compromisso não seja apenas individual, mas de todos com a coletividade, para que todos a desfrutem.

Segundo Sohail Inayatullah, pesquisador de Estudos do Futuro, professor da Universidade Tamkang em Taipei, Taiwan, e estudioso de Prout, devemos ter em perspectiva quatro dimensões ao analisar um problema. Sua teoria de análise causal em camadas classifica esses níveis em: litania, causas sociais, discurso ou visões de mundo e mitos ou metáforas. “A litania concentra-se em tendências e problemas quantitativos que muitas vezes são exagerados e usados ​​para fins políticos. Ao nível das causas sociais, a interpretação é dada aos dados quantitativos. O terceiro nível diz respeito à estrutura e ao discurso e visão de mundo que a apoia e legitima. No quarto nível, a análise busca as histórias profundas, os arquétipos coletivos, a dimensão subconsciente da questão sob investigação.” (Ivana Milojević)

Ele nos mostra que há uma interdependência nessas quatro perspectivas, e que o quarto nível é capaz de determinar a transformação das outras dimensões de forma mais significativa, ou seja, se a narrativa, o mito, a metáfora, que podemos chamar de cosmovisão que temos sobre o mundo, se modificar, os outros níveis sofrem uma mudança de paradigma e se aprimoram não apenas quantitativamente, mas alteram o foco de sua análise. O modo como enxergamos o mundo, de forma mais profunda, emocional, muitas vezes, inconsciente, poderá redefinir o modo como abordamos um problema.

Podemos considerar o Neo-humanismo como esta visão de mundo, e é o que observamos como pano de fundo em pensadores universalistas, sejam eles ateus ou espiritualistas.

Vamos pensar em um exemplo.

Os indicadores sociais são característicos da dimensão da litania, e quais são utilizados hoje em dia para se pensar em políticas públicas para populações pobres? Índices de pobreza extrema e relativa, multidimensional, de violência, Produto Interno Bruto, entre outros.

Um grande educador brasileiro, Tião Rocha, fundou o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento – CPCD, uma referência de educação comunitária e histórias de êxito na construção de alternativas de educação e formas de atuação social. Sua premissa básica, expressa da forma mais simples, é a de que é preciso uma comunidade para educar uma criança, ou um adulto, ou mesmo uma cidade, ou seja, cada potencial local de aprendizado deve ser utilizado.

Mas para pensar ações e, de forma ampliada, políticas sociais desse tipo, é preciso investigar potenciais, não debilidades, é preciso ver o lado cheio do copo, como ele diz, e isso aponta para indicadores que meçam potências, não ausências.

Outro indicador que vem ganhando destaque é o FIB – Felicidade Interna Bruta, que avalia aspectos sociais, ambientais e econômicos das comunidades e considera uma população feliz, ou não, a partir de nove pilares. A ideia surgiu em 1972 no Butão.

 “Gente infeliz não projeta nada de novo. E, embora a felicidade seja um sentimento individual, pode ser produzida coletivamente. Mas sem indicadores é difícil perceber o quanto é complexa a realidade”, destacou. “PIB mede tudo, menos aquilo que faz a vida valer a pena.” – disse o representante do Butão, Karma Dasho Ura, em debate na Rio+20

Medindo felicidade, você conhece o que trás felicidade, e irá atuar diretamente sobre esses fatores.

Não é possível utilizar indicadores de deficiências para enfrentar problemas como pobreza, por que o potencial de abordagem desses mesmos problemas está justamente ali, onde se vê apenas pobreza. As comunidades mais pobres tem sido um exemplo de resiliência social, tecnologia de baixo custo, cooperação, organização civil, criatividade, e tudo sem o menor apoio dos governos. O aprendizado exige uma olhar equânime, uma troca verdadeira, e uma profunda honestidade sobre aquilo que não sabemos. Não se podem resolver problemas de comunidades que não conhecemos, não podemos sustentar soluções e tecnologias em locais que não permaneceremos.

É preciso começar com o conhecemos, unir aqueles que compartilham do mesmo desejo, de melhorar significativamente as condições da vida neste planeta, e a partir dai, viver a mudança que almejamos, diariamente.

Este aspecto fundamental de desenvolvimento descentralizado está na base da teoria socioeconômica de Prout e é determinante na forma como torna a prática da transformação social acessível a todos.

São princípios ao mesmo tempo universais e adaptáveis por usa própria natureza: autossuficiência local como meta, modo de organização de produção e consumo através de cooperativas, ou seja, da união de interesses comuns, e a nível individual, que é a forma como estamos neste mundo, simplesmente esteja conectado a tudo que o cerca, com pleno envolvimento com a vida, com tudo que constitui a base de nossa sobrevivência e existência plena nesta terra. E neste sentido a espiritualidade, ou o desenvolvimento pleno de nossa potencialidade humana, não parte de nenhuma fuga da realidade, mas de um mergulho profundo nesta humanidade, e além dela, em tudo que constitui a vida.  Ninguém é inapto para realizar esse mergulho, ao contrário, cada um é o mais apto para transformar a realidade de sua localidade. 

Maheshvara PachecoAgir localmente pensar globalmente
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A “Grande Reconfiguração” do Capitalismo, pelos capitalistas

Francisco Dinis

Em Davos, na Suíça, o início de cada ano reúne a elite económica, no Fórum Económico Mundial (FEM) (World Economic Forum, em inglês), cuja a missão é “melhorar o estado do mundo, envolvendo líderes empresariais, políticos, académicos e outros líderes da sociedade para moldar as agendas globais, regionais e industriais”.

            Em Abril de 2020, o FEM publicou um artigo (1) onde defende que a pandemia COVID-19 está ligada à destruição da natureza. O número de doenças emergentes está a aumentar,  relacionando o fenómeno com a desflorestação e a perda de espécies. No artigo, existem vários exemplos de degradação dos sistemas ecológicos causada pelo homem. Também é dito que metade do PIB global é moderadamente ou amplamente dependente da natureza. O artigo conclui que a recuperação da pandemia tem de estar ligada à recuperação da natureza.

            Em Junho passado Klaus Schwab (fundador e responsável do FEM) apresentou o tema para o Fórum deste ano: “The Great Reset”, que decorre de 25 a 29 de Janeiro, com vários temas: “How to save the planet”; “Fair Economies”; “Tech for Good”; “Society and Future Work”; “Better Business”; “Healthy Futures and Beyond Geopolitics” (2)

            Sobre a questão ambiental o Fórum propõe um plano para uma recuperação verde, incluindo um reforço da economia circular. Dentre dos métodos mencionados, destacam-se a construção ecológica, transporte sustentável, agricultura biológica, energias renováveis e veículos elétricos. Estas propostas estão incluídas no denominado capitalismo verde, procurando-se uma redução do impacto ambiental nos processos de produção, uso da reciclagem, eficiência energética e tecnológica.

            Desde há muito tempo sabemos que, se toda a população mundial consumisse a mesma quantidade de recursos que os países mais ricos consomem, tínhamos que ter mais planetas disponíveis do que aquele onde vivemos. Cada vez mais pessoas vão ganhando consciência do que significa isto no mundo real, nos nossos estilos de vida, na destruição do mundo natural e da ameaça real à permanência da civilização humana na Terra. Assim, existe uma contradição na terminologia “capitalismo verde”, pois o objectivo principal do capitalismo é a acumulação de capital, para tal é necessário um crescimento económico constante, e este crescimento será sempre ambientalmente destrutivo, por mais verde que seja, pois a longo prazo a natureza tem limites. Poderemos até ser mais eficientes a usar os recursos naturais, mas continuaremos a destruir. Levaremos mais tempo, mas chegaremos ao seu esgotamento.

             Outro aspecto do Fórum deste ano é a defesa de uma cooperação entre os”stakeholders” da economia, para gerirem as consequências desta pandemia, através de um redesenho do sistema socio-económico capitalista. Isso mesmo, os multimilionários defendem que a estrutura actual deve ser modificada, porque para além da destruição ambiental, a desigualdade económica sistémica ameaça colapsar todo o edifício. Nesse sentido, o FEM está a repescar o conceito de “stakeholder capitalism” e tentar aplicar-lo no momento pós pandemia, ao invés do actual modelo de “shareholder capitalism” (proprietários do capital).

            Qual a diferença entre os dois conceitos? O actual modelo baseado no “Shareholder capitalism” dá primazia a um objectivo único – o de canalizar o máximo possível de dinheiro para os proprietários da empresa (os “shareholders”). Os proponentes do ”stakeholder capitalism” defendem que para além dos proprietários, a empresa deve ter em consideração os trabalhadores, fornecedores, clientes, pois de outra forma as corporações aumentarão sempre a desigualdade económica dentro da sociedade, nessa ânsia de maximização da acumulação destinada aos “shareholders”. Ver debate em (4 e 5).

            Existe um conjunto de reações a estas propostas. Alguns podem dizer que são apenas cosmética, que daqui a alguns anos volta tudo à mesma, com algum marketing a evidenciar algo de positivo feito no entretanto. Os observadores mais à direita dizem que é uma forma de introduzir ideias socialistas e de esquerda, perigosas para o capitalismo. Os fãs (ou fanáticos) da liberdade individual acima de tudo, sentem-se incomodados também, pois uma série de restrições à sua vontade serão impostas por instituições que, afirmam, querem controlar a nossa sociedade global (claro não falando de teorias da conspiração sobre o “Great Reset”, que vão povoando o espaço cibernético, quais histórias mitológicas modernas, onde a racionalidade e a prova factual está ausente).

            Do ponto de vista de Prout o sistema capitalista não conseguirá garantir uma permanente distribuição de riqueza na sociedade, nem uma proteção ambiental adequada, pois na ausência de democracia económica nunca poderá haver um escrutínio e transparência das decisões que impactam todos os intervenientes no sistema, nem haverá um poder  económico descentralizado efectivo (pois muitos continuarão não ter voz), para atingir soluções que atendam às necessidades de todos os seres humanos e não só. Pois uma coisa é termos uma democracia formal, no papel, para sentirmos bem, outra é uma democracia real, vivida e sentida.

            O Great Reset do FEM é uma tentativa de reformar o sistema capitalista. Por um lado o capitalismo verde promete melhorar o ambiente, num processo de transição para um mundo mais ecológico, e o “stakeholder capitalism”, diminuir a desigualdade económica. No fundo temos um grupo de pessoas que actualmente detêm o poder económico, com capacidade de tomar grandes decisões económicas e/ou influenciar políticas públicas, decidir ter um pouco menos de rendimento/riqueza, para evitar um colapso total.

            Antes da implosão do sistema comunista houve também uma tentativa de reforma, a chamada Perestroika do então presidente da USRR, Gorbatchev. Passado alguns anos todo o sistema soviético ruiu literalmente, com a queda do muro de Berlin, “numa bela noite”. O que vai acontecer ao sistema capitalista actual? A ver veremos…

(1) https://www.weforum.org/agenda/2020/04/covid-19-nature-deforestation-recovery/

(2) https://www.weforum.org/events/the-davos-agenda-2021

(3) https://www.rs21.org.uk/2019/03/16/revolutionary-reflections-green-capitalism-a-critical-review-of-the-literature-part-iii/

(4) https://qz.com/1909715/the-difference-between-stakeholder-and-shareholder-capitalism/

(45 https://www.weforum.org/agenda/2020/01/shift-to-stakeholder-capitalism-is-up-to-us/

Maheshvara PachecoA “Grande Reconfiguração” do Capitalismo, pelos capitalistas
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