Autoria: Luara Balista – Aluna de Licenciatura do curso de Relações Internacionais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil)/ Universidade de Coimbra (Portugal) e membro do Grupo de Estudo da Teoria de Utilizacao Progressiva GETUP.
Nota Prévia: Este artigo foi escrito em Portugês do Brasil.
O sistema político internacional vem sendo marcado por um ciclo contínuo de ascensão e queda de potências globais, no qual o Estado dominante é conceituado como o hegemon, pois exerce uma influência desproporcional sobre as relações internacionais, moldando normas, valores e políticas internacionais de acordo com seus próprios interesses. Ao observar alguns ciclos históricos da sociedade humana é possível evidenciar um ciclo dinâmico deste sistema hegemônico. Na Grécia antiga, Atenas ameaçou Esparta. No final do século XIX e início do século XX, a Alemanha desafiou o Reino Unido, e atualmente, a ascensão chinesa é uma ameaça aos Estados Unidos, a maior hegemonia da história.
Nesse contexto, este artigo busca explorar os efeitos da hegemonia vigente sobre as dinâmicas globais e analisar a ascensão da China como uma potencial nova potência hegemônica, examinando quais implicações a mudança de pólos poderia significar para a sociedade. A partir destas constatações o artigo questiona se as transformações da hegemonia americana para a chinesa seriam de fato significativas ou se para alcançar um verdadeiro bem-estar global, é necessário desconstruir o sistema internacional como o conhecemos e estabelecer uma nova ordem mundial, fundamentada em princípios de cooperação, equidade e sustentabilidade a partir de propostas da Teoria da Utilização Progressiva.
O fim da Guerra Fria em 1989, e a subsequente implosão da União Soviética, deixaram os Estados Unidos como potência dominante no sistema mundial. Desde então, essa hegemonia estadunidense vem atuando de duas maneiras distintas: a) Através do hard power, com o uso direto e tangível da força militar e econômica a fim de influenciar os eventos e as políticas globais a favor do interesse americano, como nas guerras no Oriente Médio ou nas diferentes intervenções humanitárias empregadas nas últimas décadas e que, escondem o interesse pela apropriação de recursos naturais; e b) a prática do soft power que consiste na capacidade em influenciar as demais nações (sem exercer o uso direto da força militar), fundamentando uma influência global sob supostos preceitos éticos, de liberdade e democracia, que resultam no sistema capitalista, tal como o conhecemos.
Mas quais as consequências da força americana na manutenção do sistema capitalista? Este sistema capitalista beneficia principalmente os mais poderosos na manutenção de seu status quo, em detrimento do bem-estar dos demais, o que vem corroborando para uma desigualdade crescente entre países ricos e pobres, denominados nas Relações Internacionais, como Norte e Sul globais.
As políticas liberais promovidas pelos EUA, e implementadas principalmente pelas Instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) – estabelecidas no pós Segunda Guerra Mundial, contribuíram significativamente para a concentração de riqueza nas mãos de poucos, tanto a nível nacional quanto internacional. Pois tanto o Banco Mundial quanto o Fundo Monetário Internacional (FMI), destinados a financiar projetos de desenvolvimento e estabilizar taxas de câmbio internacional para os países do Sul, impunham, em contrapartida, condições rigorosas aos financiamentos, exigindo a adoção de determinadas políticas liberais que beneficiavam principalmente empresas multinacionais e investidores estrangeiros, às custas dos trabalhadores locais e do setor público desses países.
Como consequência dessa desigualdade, muitos países em desenvolvimento tornaram-se altamente dependentes da economia americana, o que os torna vulneráveis a crises econômicas globais e ao soft power do hegemon. Por exemplo, enquanto os EUA acumulam mais de um quarto da riqueza global, o continente africano não detém nem mesmo 3% deste todo; além de que esses países economicamente vulneráveis são alvos da exploração desenfreada dos recursos naturais em seus ricos territórios, levando à degradação ambiental e a exploração de povos e comunidades locais, criando ainda uma homogeneização cultural, e levando a perda de tradições, línguas, conhecimentos e habilidades únicas, em favor da cultura ocidental. O que pode levar à uma marginalização cada vez maior de determinados grupos étnicos, gerando maiores desigualdades globais.
Contudo, cada vez mais, essa hegemonia americana, se vê ameaçada à medida que a China ascende como uma potência econômica, tecnológica e militar. Essa transição implicará em uma reconfiguração da ordem global e da balança de poder. Mas será que a China enquanto nova hegemonia transformará a forma pela qual se estrutura as relações desiguais de poder?
A emergência da China como potência hegemônica destaca-se como um dos desenvolvimentos geopolíticos mais significativos do século XXI. Nos últimos anos, a China passou por uma transformação dramática, consolidando sua posição como uma potência global em rápido crescimento.
“O mundo nunca viu nada parecido com a mudança rápida e tectônica no equilíbrio global de poder criado pela ascensão da China.” (ALLISON, 2020, p.6)
Ainda que politicamente a China seja um Estado de partido único, refletindo assim o passado comunista chinês, internacionalmente, a economia da nação está hoje mais próxima do capitalismo do que do comunismo por seguir o modelo liberal do livre comércio.“Os líderes da China adotaram o que chamam de política de ‘portas abertas’ em relação ao mundo exterior como uma parte vital de seu programa para modernizar o país” (YAHUDA, 1983, p. 1). Com um setor privado forte e uma sociedade crescente de consumo, a nação atualmente, já rivaliza de perto com os Estados Unidos em termos de Produto Interno Bruto e em paridade de poder de compra.
Deste modo, focada no comércio global e na manufatura, tal como na produção e exportação de uma ampla gama de produtos, a China, com uma visão de política externa hierarquizada do sistema internacional, vem perpetuando o mesmo modelo neoliberal internacionalmente, onde recursos retirados de áreas subdesenvolvidas são extraídos a baixo custo e direcionados aos capitais estrangeiros.
Um dos principais problemas do capitalismo é a drenagem de recursos de uma região e a subsequente concentração de riqueza, gerando uma dependência econômica destes países devido a flutuações nos preços internacionais desses produtos. Vale notar que os países que dependem da exportação de recursos naturais enfrentam subdesenvolvimento e baixo padrão de vida.
Estes fatores demonstram que a transição do polo hegemônico dos Estados Unidos para a China, não apresentará uma solução para a deficiente ordem unipolar atual e que a sobreposição da hegemonia americana pela chinesa não ocasionará mudanças significativas na ordem global. Ou seja, a troca de um poder pelo outro, não produzirá uma revolução nas bases do sistema neocolonialista, pois a China continuará a “tradição neoliberal”, tal como os Estados Unidos, de usar a sua força hegemônica em prol de seus objetivos políticos e econômicos, visando, primordialmente, sua sobrevivência e projeção de poder. Acarretando a manutenção de um sistema que continua a perpetuar (desde a época colonial) uma dinâmica entre os Estados que favorece a exploração dos mais fortes sobre os mais fracos na busca por ganhos máximos.
Qual seria, portanto, a alternativa a esta ordem global? E como poderia-se consolidar um sistema internacional favorável a todos?
Uma alternativa a esta realidade, proposta pelo filósofo P. R. Sarkar e fundamentada na Teoria da Utilização Progressiva (do inglês: PROUT ), propõe uma abordagem revolucionária para a construção de uma ordem global justa e equitativa. De acordo com PROUT, primeiramente, é preciso estabelecer a produção local juntamente com a liberdade na tomada de decisões pela população da localidade a fim de implementar uma democracia econômica, descentralizada de um poder hegemônico e unipolar. Politicamente, democracia implica uma liberdade de escolha, similarmente, uma democracia econômica significa a capacidade de escolher como usar os recursos e investir os lucros na própria região. Ou seja, partir da base, em que os frutos do trabalho e da matéria-prima são regionais, e é a comunidade local que deve manter controle sobre esses recursos. Para tanto, PROUT é criterioso ao enfatizar a importância de que tanto as nações desenvolvidas, quanto as em desenvolvimento, busquem consolidar economias auto-suficientes no setor industrial e agrícola a fim de priorizar a exportação de produtos acabados (1), em vez da exportação de matéria prima. Uma vez fortalecidas, essas indústrias podem crescer para além das fronteiras nacionais através da formação de blocos comerciais que assegurem primeiro as necessidades locais para depois exportar internacionalmente.
Um exemplo recente desta luta aconteceu em Burkina Faso, onde o líder africano, Ibrahim Traoré, reivindica o direito pela matéria prima de seu território e luta pelo fim do imperialismo na África:
“Como a África, com tanta riqueza no seu solo, com natureza generosa, água, sol abundante, é hoje o continente mais pobre? (…) Nós, chefes de estado africanos, precisamos parar de nos comportar como fantoches que dançam sempre que os imperialistas puxam as cordas”. (FÓRUM, 2023)
Esta fala reivindica que as matérias-primas e os recursos de uma determinada região permaneçam na própria região, para processamento e manufatura, garantindo que, à medida que a produção aumenta, os benefícios sejam direcionados para os habitantes locais, em vez de serem explorados por nações estrangeiras. Decisões como essas, têm o potencial de melhorar o padrão de vida da população local, ao invés de enriquecer somente alguns Estados-nações e evitar, assim, a interferência de setores estrangeiros na economia local e a fuga de capital que empobrece o chamado “Sul global”, pois, tais medidas permitiriam que as pessoas da região produtora de matérias-primas sejam as beneficiárias legítimas e efetivas desses recursos.
Em última análise, o sistema neoliberal, que fomenta a competição entre Estados na busca pelo lucro, reflete uma visão anárquica das relações internacionais, em que muitos conflitos internacionais são consequências da busca pelo ganho máximo, atrelado ao imperialismo econômico. Como resposta a essa anarquia, PROUT propõe uma alternativa a esta realidade através do estabelecimento de uma governança mundial 2 ética, totalmente focada em atender aos interesses de toda a humanidade.
A ideia de uma governança mundial, combinada com a descentralização econômica e a democracia econômica 2, pode representar um caminho para um mundo melhor. Em vez da competição desenfreada e do abuso de poder dos mais fortes sobre os mais fracos, a cooperação global se tornaria o princípio fundamental de uma ordem internacional mais equitativa, onde as necessidades e diferenças culturais de todos os povos são considerados e respeitados, enquanto a sociedade humana progressa coletivamente.
Para contribuir, dentro de nossas capacidades, com o progresso coletivo em direção a um sociedade justa e um sistema internacional democrático, podemos começar a passos pequenos apoiando empresas locais e cooperativas 2, e promover a conscientização sobre estas questões globais que afetam nosso mundo. Ao agir localmente e pensar globalmente, cada indivíduo pode contribuir para a construção de um sistema internacional mais equitativo, como proposto pela Teoria da Utilização Progressiva.
Referências Bibliográficas:
ALLISON, Graham T. A caminho da guerra: Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides? Rio de Janeiro: Intrínseca. 2020.
FÓRUM, “Pátria ou morte”: presidente de Burkina Faso emociona com discurso anti-imperialista. 2023. Disponível em: https://revistaforum.com.br/global/2023/7/31/patria-ou-morte-presidente-de-burkina-faso-em ociona-com-discurso-anti-imperialista-141404.html. Acesso em: 15 de setembro de 2023.
SARKAR, Prabhat R. Democracia Econômica: Teoria da Utilização Progressiva. 2009. Editora Ananda Marga Yoga e Meditação.
PROUT. On Trade. 2018. Disponível em: https://prout.info/blog/2018/05/02/what-does-prout-say-about-trade/. Acesso em: 15 de setembro de 2023.
YAHUDA, Michael B. Towards the End of Isolationism: China’s Foreign Policy After Mao (China in Focus Series). 1983. Palgrave Macmillan.
Notas de Rodapé:
1) No caso dos países com vastos recursos naturais, este país poderia exportar o excedente de suas matérias primas para outro que o necessite. Neste cenário, onde uma nação tem recursos demais e o negocia com outra que tem de menos, os termos de negociação se darão de maneira mais equitativa.
2) “governança mundial”, “descentralização econômica e a democracia econômica“ e “cooperativas”, brevemente publicaremos artigos sobre estes conceitos.